Festas

UM RITUAL VIAJANTE

As festas do Espírito Santo podem ser vistas como um ritual viajante. Tendo tido início em Portugal continental no início do século XIV, viajaram para os arquipélagos da Madeira e dos Açores a partir do século XVI, tendo assumido nos Açores uma importância central na cultura local, que vem até hoje. A partir do século XVII, viajaram de Portugal continental e dos Açores para o Brasil, onde têm uma presença relevante em estados como o Maranhão, Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A partir de finais do século XIX, acompanhando a diáspora açoriana, viajaram para a América do Norte, onde ocupam lugar de particular destaque na Califórnia, Nova Inglaterra (em particular nos estados de Massachusetts e Rhode Island) e no Canadá (em particular nas província do Ontário, Québec e Vancouver). Mas existem festas noutros estados norte americanos – como a Florida, Idaho, Nevada e Montana – e noutras províncias do Canadá – como o Manitoba, Saskatchewan e Alberta. Existem também festas no Havaí e na Bermuda.

Mapa das Viagens das Festas do Espírito Santo

AS FESTAS: ASPETOS COMUNS

As festas do Espírito Santo apresentam nestes diferentes contextos uma grande diversidade de formas. Mas apresentam também alguns aspectos comuns. Assim, quanto às suas datas, as festas do Espírito Santo, convergindo geralmente para o domingo de Pentecostes, podem ainda recair sobre qualquer domingo compreendido entre o domingo de Pentecostes e o final do Verão e nalguns casos – embora mais raramente – podem mesmo convergir para outras datas ao longo do ano. Em qualquer dos casos, trata-se de festas de longa duração, uma vez que entre as cerimónias preliminares que dão início às festas e os rituais que assinalam o seu termo podem mediar períodos de duas, três e até, nalguns casos, sete ou oito semanas (geralmente as sete ou oito semanas compreendidas entre o domingo de Páscoa e os domingos de Pentecostes e da Trindade).

Vistas pelos seus participantes as festas do Espírito Santo ocupam um lugar central no campo religioso local: não são mais uma festa, nem uma festa qualquer; são a mais importante festa local e o principal ritual por intermédio do qual os homens (e as mulheres) interagem com a divindade. Na sua base estão a fé ou a devoção ao Espírito Santo, muitas vezes inscritas no próprio mecanismo de realização das festas. De facto, em muitos casos as festas resultam de promessas individuais que intercambiam a graça divina solicitada com a promoção de uma festa em honra e louvor do Espírito Santo. Fornecem, por outro lado, o contexto ritual para o pagamento de outras promessas menores. Finalmente, estão em muitos casos associadas a formas mais genéricas e difusas de devoção ao Espírito Santo enquanto garante da protecção e bem-estar individual e colectivo. Isso significa que a figura do Espírito Santo ganha, lá onde têm lugar festas do Espírito Santo, uma posição de grande centralidade como interlocutor divino preferencial dos homens (e das mulheres), desempenhando um papel idêntico àquele que noutros contextos desempenham diferentes invocações de Nossa Senhora, de Cristo ou de santos (e santas).

No âmbito das festas, o Espírito Santo é geralmente representado – de uma forma sui generis – por uma coroa, a chamada Coroa do Espírito Santo, geralmente encimada por uma pomba e acompanhada de um ceptro. Nalguns casos, entretanto, a coroa partilha o seu protagonismo com outras representações materiais da divindade, das quais a mais conhecida é a bandeira do Espírito Santo, geralmente uma bandeira vermelha com uma pomba bordada a branco ou a dourado. Esta forma de representação sui generis da divindade – por intermédio da coroa do Espírito Santo – é responsável por um dos traços mais relevantes do script ritual das festas: a sua associação mais ou menos generalizada a uma linguagem de poder inspirada na terminologia e na etiqueta ritual das monarquias europeias das épocas medieval e moderna. Isso é particularmente evidente quando as festas elas próprias são conhecidas pela designação de Impérios. Reencontra-se noutras designações dadas aos seus personagens rituais. Assim, embora expressões como mordomo ou festeiro sejam correntes, imperador é uma das designações dada à pessoa que se encontra à frente das festas ou – nalguns casos – à criança que a representa. E outros exemplos poderiam ser dados, todos eles testemunhando da fusão das linguagens religiosa e política nas festas do Espírito Santo. O mais significativo porém é a cerimónia da coroação, quando o padre, no termo da missa do dia da festa, impõe a coroa ao imperador e/ou ao mordomo ou a alguém que o representa (geralmente uma ou mais crianças ou adolescentes).

Do ponto de vista da sua composição ritual, as festas do Espírito Santo apresentam uma grande variedade de soluções rituais, umas próximas do repertório festivo do catolicismo – procissões, missas, terços – outras – como a coroação – próprias do repertório específico das festas. A articulação que nelas podemos encontrar entre celebração religiosa e arraial é também recorrente. Entretanto, o que avulta no repertório específico das festas do Espírito Santo é a presença de rituais que de formas diferentes envolvem a circulação e a partilha de alimentos. Algumas festas fogem a esta regra, mas de uma forma geral as festas do Espírito Santo são caracterizadas pela proeminência da linguagem da dádiva, sob a forma de refeições, de dádivas e contra-dádivas de alimentos, representando em muitos casos elevados custos monetários para os seus organizadores. Circulando entre os homens (e as mulheres), estas dádivas alimentares – devido ao gasto monetário que envolvem – têm também um significado religioso, uma vez que são em muitos casos vistas como uma das formas principais de retribuição das graças divinas concedidas. Se nalgumas festas esta comensalidade se faz sob formas mais modestas e envolve um número mais restrito de pessoas e/ou famílias, muitas delas dão lugar a complexas redes de circulação de alimentos envolvendo o abate e o consumo da carne de várias dezenas de cabeças de gado.

As festas do Espírito Santo definem-se também pela sua autonomia tendencial face à igreja. As suas soluções organizativas são diversificadas: festeiros individuais que assumem o encargo em resultado de promessas; irmandades laicas com maior ou menor grau de institucionalização; grupos mais informais de devotos, etc. Em qualquer dos casos, as festas, para além dos grupos de pessoas mais directamente envolvidos com a sua realização, articulam-se também com a participação – nomeadamente no tocante ao financiamento dos festejos – das comunidades em que se inserem ou de segmentos significativos destas. Seja qual for o seu formato organizativo, as festas são entretanto marcadas por uma autonomia considerável em relação à igreja. Isso não significa, em muitos casos, que a igreja e, individualmente, muitos padres, não se tenham envolvido e não se continuem a envolver com a festa. Se em muitos casos esta intervenção eclesiástica não suscita problemas de maior, nalguns casos ela constituiu-se historicamente – em particular a partir do final do século XIX e durante o século XX – como um foco de conflitos entre o clero, os agentes laicos ligados ao culto e as populações. Nalguns casos, esses conflitos conduziram ao momentâneo controlo eclesiástico do culto ou mesmo à sua proibição. Mas em geral pode-se falar de um êxito limitado da igreja no controlo do ritual.

AS FESTAS DO ESPÍRITO SANTO NA AMÉRICA DO NORTE

Nos EUA e no Canadá as festas do Espírito Santo foram recriadas por imigrantes açorianos em duas etapas distintas. A primeira etapa desenvolveu-se entre 1870 e 1930, quando teve lugar a primeira vaga migratória açoriana para os EUA (e também para o Havai). No caso dos EUA os imigrantes fixaram-se na Califórnia e na Nova Inglaterra. Embora a caça à baleia tenha sido o motor inicial desta primeira imigração, o declínio desta atividade a partir de finais do século XIX determinou a passagem dos imigrantes para outras atividades: agricultura e criação de gado, no caso da Califórnia e trabalho assalariado na indústria têxtil na Nova Inglaterra. Com a Grande Depressão dos anos 1920 a imigração açoriana para os EUA foi interrompida para ser de novo retomada entre os anos 1960 e os anos 1980. Nos EUA, a Califórnia e a Nova Inglaterra mantiveram-se como os destinos principais dos imigrantes. Simultaneamente, esta segunda vaga migratória abrangeu um conjunto de novos destinos, com destaque para o Canadá (e a Bermuda). No Canadá os primeiros imigrantes foram trabalhar como assalariados na construção dos caminhos-de-ferro e em quintas, mas rapidamente se deslocaram para as grandes cidades – como Toronto, Montreal e Vancouver – onde passaram a trabalhar na indústria e na construção (os homens) ou em serviços domésticos e limpezas (as mulheres). Em consequência destas duas vagas migratórias deverão viver hoje na América do Norte perto de 1,8 milhões de pessoas de origem portuguesa: 1,4 milhões nos EUA (90% das quais de ascendência açoriana) e 420.000 no Canadá (70% das quais de ascendência açoriana).

Ligado a estas duas vagas migratórias, o movimento de recriação das festas foi particularmente precoce na Califórnia, onde a primeira festa surgiu em Carmelo em 1865. Nas décadas seguintes assistiu-se a uma rápida multiplicação das festas neste estado norte-americano, de tal modo que no final do século XIX o seu número total era de 26. Mas foi sobretudo nas primeiras décadas do século XX que o número de festas, acompanhando o crescimento da imigração, se tornou mais expressivo: entre 1910 e 1930 o ritmo de crescimento das festas foi de 30 por década. Em consequência, no final da década de 1920, o número total de festas do Espírito Santo na Califórnia era de 130. Na Nova Inglaterra (estados de Massachusetts, Rhode Island, Connecticut e New Hampshire) a primeira festa surgiu mais tarde, em 1877, em Fall River. O crescimento das festas ao longo do século XIX foi também mais lento: em 1900 existiam apenas cinco festas. Mas com o advento do século XX, o ritmo de fundação dos festejos aumentou e, embora os números não sejam tão expressivos como na Califórnia, em 1929 era de 30 o número total de festas na Nova Inglaterra.

Este movimento de criação das festas – de que faz também parte uma festa no Havaí – atenuou-se a partir dos anos 1930, com o fim da primeira vaga migratória açoriana. Tanto na Califórnia como na Nova Inglaterra o número de novas festas criadas no decurso das décadas de 1930 e 1950 tornou-se residual e com a crescente assimilação de muitos açorianos de 2ª geração à sociedade norte-americana houve mesmo um declínio no número de festas, relativamente bem documentado para a Califórnia. Aí o número total de festas descontinuadas desde 1860 até 2000 foi de 45, tendo a maioria provavelmente terminado nos anos que se seguiram à II Guerra Mundial.

A partir dos anos 1960, com a segunda vaga migratória açoriana, o movimento de recriação das festas ganhou um novo fôlego. Festas moribundas ou interrompidas foram revitalizadas e novas festas foram criadas. Entretanto, contrariando a tendência prevalecente no período compreendido entre 1860 e 1940, o ritmo de criação de novas festas foi mais significativo na Nova Inglaterra do que na Califórnia. Entre 1960 e 1990 – quando esta segunda vaga migratória chegou também ao fim – foram iniciadas nove novas festas na Califórnia contra 34 na Nova Inglaterra. Depois de 1990, a criação de festas tem sido mais residual, mas mesmo assim, foi mais significativa na Nova Inglaterra – com 15 festas – do que na Califórnia – onde apenas duas novas festas foram iniciadas. Compensando este movimento de declínio, novas festas foram entretanto lançadas noutros estados norte-americanos para onde se têm vindo a deslocar imigrantes açorianos provenientes da Califórnia e da Nova Inglaterra. É o caso da Florida, onde muitos imigrantes reformados – provenientes maioritariamente da Nova Inglaterra – se têm vindo a estabelecer nas últimas décadas e onde se realizam anualmente seis festas. E é também o caso dos estados de Idaho e Colorado onde novas festas foram criadas por grupos de imigrantes provenientes da Califórnia.

É também dos anos 1960 que datam as primeiras festas do Espírito Santo no Canadá. A primeira festa foi criada em 1962 em Cambridge (Ontário). Durante a década de 1960 cinco outras novas festas foram iniciadas, mas foi sobretudo no decurso das décadas de 1970 e 1980 que o movimento de lançamento das festas se acelerou: 50 novas festas foram então criadas. Depois de 1990 – com o declínio da imigração açoriana para o Canadá – o movimento de recriação de festas tornou-se – à semelhança dos EUA – mais residual, mas mesmo assim 19 novas festas foram iniciadas nesse período.

Em resultado deste quarto ciclo de viagens do Divino existem hoje na América do Norte cerca de 290 festas do Espírito Santo. Nos EUA, o número total de festas é de 202: 99 festas têm lugar na Califórnia, 91 na Nova Inglaterra, seis na Florida e cinco noutros estados vizinhos da Califórnia (Colorado, Montana). No Canadá por seu turno, realizam-se anualmente 87 festas: 59 na província do Ontário, onze no Québec, sete na British Columbia e dez noutras províncias canadianas (Manitoba e Alberta). Há ainda festas no Havaí e na Bermuda.

Mapa da Densidade de Festas do Espírito Santo na América do Norte

North America - Density Color Small

Embora algumas festas – sobretudo nos EUA – sejam organizadas por açoriano-descendentes de terceira e quarta geração, a esmagadora maioria das festas na América do Norte é organizada por imigrantes de primeira geração que as estruturaram inicialmente de acordo com os diferentes modelos prevalecentes nas suas ilhas de origem. Assim, na Califórnia – onde predominam imigrantes provenientes das ilhas do grupo central do arquipélago dos Açores (Terceira, Pico, São Jorge, Faial, Graciosa) – a maioria das festas deve ter começado por se organizar de acordo com o modelo dominante nestas ilhas, mas parece ter depois evoluído para soluções mais padronizadas cuja emergência pode ter sido facilitada pela existência de uma estrutura federativa agregadora das diferentes festas, a IDES (Irmandade do Divino Espírito Santo) do estado da Califórnia. Na Nova Inglaterra e no Canadá, onde são maioritários os imigrantes originários de São Miguel, a maioria das festas obedece por seu turno ao modelo micaelense. Um tal facto não significa que não haja espaço para festas organizadas por referência a modelos prevalecentes noutras ilhas.

Ao mesmo tempo que se organizam por referência às ilhas de origem dos imigrantes, as festas do Espírito Santo conheceram também na América do Norte modificações importantes. Uma das mais conhecidas foi a introdução das rainhas (ou queens) na sua sequência ritual: crianças ou adolescentes do sexo feminino vestidas luxuosamente que passaram a assumir um papel central nos festejos. Iniciada na Califórnia nas primeiras décadas do século XX, esta inovação espalhou-se depois para muitas festas da Nova Inglaterra e do Canadá e acrescentou uma feição marcadamente norte-americana aos festejos. Mas, paralelamente às rainhas, outras inovações significativas tiveram lugar, respeitantes às datas e modalidades organizativas dos festejos, ao seu script ritual e aos seus significados religiosos, culturais e sociais. Por seu intermédio as festas do Espírito Santo na América do Norte tornaram-se distintivamente norte-americanas e configuraram-se gradualmente como dispositivos essenciais para a produção de novas formas de religiosidade, sociabilidade e identidade dos portugueses de origem açoriana da América do Norte e como instrumentos importantes de negociação da sua inserção cultural e social na paisagem multicultural da “terra de acolhimento”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Autoria do texto: João Leal, Centro em Rede de Investigação em Antropologia, FCSH (UNL)